História da Casa


Imbuído do espírito da Fraternidade Universal e intuído por um desejo manifestado por minha filha Micaela, um punhado de pessoas, em meados dos anos 90, fundou o Grupo de Apoio Dona Benedita, destinado a levar alimento a moradores-de-rua da região central da cidade de São Paulo. Tinha este nome em homenagem à velha Benedita, uma ex-moradora-de-rua que nós apadrinhamos por volta dos anos 80 e que nos deixou um legado de que era possível resgatar a dignidade de pessoas nestas condições.
Éramos menos de dez.
Neuza, minha esposa alquímica, nossos filhos Giovanni, Rossana e Micaela, meu genro Ricardo, o amigo Edson Sampaio e eu. O Grupo saía todas as quintas-feiras à noite, ao redor das 21 horas, pelo centro de São Paulo, munido de dois garrafões com chocolate quente e um cesto lotado de sanduíche de mortadela. Como andássemos à noite por ruas classificadas de perigosas, indo da Praça Marechal Deodoro, passando pela Avenida São João, Amaral Gurgel, Duque de Caxias e Praça Princesa Isabel, íamos vestidos com um guarda-pó branco com os dizeres "Amigos da Vida", impresso nas costas, o que nos diferenciava das demais pessoas que, pelos mais diversos e escusos motivos, trafegavam por aqueles locais.
Logo que iniciamos este trabalho, estávamos todos convencidos que deveríamos ajudar a matar a fome dos moradores-de-rua. Ledo engano! O que eles mais têm é comida, principalmente os do centro de São Paulo. Podem ter certeza de que passa fome mesmo é quem mora em favelas ou na periferia. Morador-de-rua não. São entidades assistenciais das mais diversas origens filosóficas e religiosas que levam comida aquele pessoal. Tem noites, principalmente entre segunda e sexta-feira, em que chegam a passar mais de três grupos distribuindo comida. Vai desde o tradicional sopão até o sofisticado "marmitex", passando por diversos tipos de lanche. Mas foi logo nos primeiros meses de andança  noturna que esta nossa filosofia de trabalho mudou. Primeiro, porque vimos que havia até um certo desperdício por parte dos assistenciados em virtude do excesso de oferta de alimentos; segundo, porque um fato marcante aconteceu conosco.
Era uma noite muito fria de inverno quando passávamos pela Avenida São João, embaixo do "Minhocão". Na esquina da Rua Apa, pertinho da Angélica, encontramos pela primeira vez Denise. Deitada num vão de porta de um prédio comercial de esquina, enrolada em folhas de jornal e protegida da fina garoa paulistana por uma pequena marquise, ali estava Denise, uma pretinha magrela, ao redor dos vinte anos, de cabelos curtos encarapinhados. Quando lhe oferecemos um copo de chocolate quente e um sanduíche de mortadela acompanhados do casaco que Neuza despiu para entregar-lhe, aceitou-os de imediato com um forte sotaque carioca e ofertou-nos, em troca, um desdentado sorriso cheio de simpatia. A empatia que se estabeleceu entre o Grupo e Denise foi imediata. Nossos corações se abriram em compaixão e recebemos Denise, imediatamente, como nossa protegida.
Havia uma lacuna em nossos corações. Semanas antes havíamos perdido contato com o "velhinho" do Ricardo. Um velhinho frágil e simpático, com idade bem avançada, que havia sensibilizado a todos e ao Ricardo de uma forma especial, fato que lhe valeu o apelido. Nós o encontrávamos todas as quintas-feiras e ele, apesar de demonstrar estar sofrendo de um grave mal físico, sempre se recusava em receber qualquer tipo de ajuda. Ricardo emocionava-se muito sempre que via o "velhinho". Dizia-nos que belas lembranças de seu velho avô vinham à sua memória. Nós todos ficávamos de lado e deixávamos Ricardo curtir seu "velhinho". Uma certa noite o "velhinho" não mais estava na calçada da Praça Marechal Deodoro. Perguntamos por ele mas ninguém soube informar o que havia acontecido. Alguns disseram que ele tinha morrido, outros que um parente o havia encontrado e o levado para o interior. O certo é que nunca mais vimos o "velhinho".
Este nosso encontro com Denise teve um efeito semelhante. Passamos a encontrá-la todas as quintas à noite no mesmo lugar. Ficávamos todos muito emocionados ao vê-la. Percebemos, de imediato, que ela se encontrava muito doente do pulmão, mas assim como o "velhinho", ela também não aceitava nossa ajuda. Contou-nos que era usuária de álcool e "crack" e que se prostituia, até por um real, para poder comprar um "biricutico" da pedra. Veio do Rio para São Paulo fugindo do pessoal do tráfico de lá em virtude de uma dívida não paga.
A cada quinta-feira nossa ofensiva tentando convencer Denise a procurar um médico aumentava, mas era em vão. Como uma ponta de esperança, ela nos dizia que, se um dia resolvesse se tratar seria por nosso intermédio.
Numa determinada noite,  chegamos à esquina da São João com a Apa e ela não estava lá. Perguntamos por Denise a outros moradores-de-rua mas ninguém soube informar para onde ela tinha ido.
Fomos para casa desolados tentando imaginar o que teria acontecido.
Quase três meses se passaram quando, em uma noite de chuva forte e frio intenso, um morador-de-rua informou-nos que ela estava dormindo em uma calçada de uma rua lá pros lados do Largo de Santa Cecília. Fomos para lá imediatamente e a cena que encontramos, tenho certeza, marcou indelevelmente cada um dos integrantes do Grupo.
Deitada na chuva, junto a um muro, num colchão encharcado e coberta por um fino cobertor, ardendo em febre, lá estava Denise, abandonada à própria sorte, um farrapo humano, gemendo de dor e esperando-nos para ser levada a um Pronto Socorro.
Tratamos de socorrê-la imediatamente. Ao removê-la, constatamos que estava despida e com o corpo coberto de nódulos. Tossia muito e tinha manchas brancas na língua.
 Levamos Denise para a Santa Casa, onde foi prontamente atendida e encaminhada para internação.
Em conversa com os médicos que a atenderam tivemos a triste notícia de que ela estava muito mal, com uma doença pulmonar em estado avançado, motivada possivelmente pelo virus HIV. Ficou internada na ala de doenças contagiosas.
No dia seguinte, no horário de visitas, lá estávamos nós para vê-la. Seu estado de saúde era da maior gravidade. Os exames haviam confirmado a presença do virus HIV já com o comprometimento de vários órgãos.
Mas apesar da gravidade do caso, encontramos Denise com o aspecto muito melhor do que o da noite anterior. De banho tomado, vestida com um avental branco, os cabelos penteados, e deitada numa cama com alvos lençóis, passava-nos a imagem de um ser humano muito diferente daquele farrapo que encontramos na noite anterior. Conversamos bastante com ela e vislumbramos a esperança de uma nova vida. Naquela tarde fomos para casa animados com a mudança ocorrida. No dia seguinte a encontramos melhor ainda. Ao seu lado, no criado-mudo, haviam flores e frutas e no seu pulso, enrolado, um rosário de contas doado por uma irmã-de-caridade que por lá passara. Parecia ter ocorrido um renascimento. Nossa alegria, acompanhada de uma pontinha de orgulho, era imensa, pois nos sentíamos partícipes daquela transformação.
Era o primeiro resultado relevante que alcançávamos em nosso trabalho nas ruas.
Acompanhamos Denise por uma semana e a cada dia, apesar dos médicos alertarem que seu estado de saúde era gravíssimo, sentíamos uma evolução no seu aspecto mental e espiritual o que nos enchia de esperança.
Resplandecia ao seu redor uma aura de amor, de fé e de esperança em uma nova vida.
E assim foi, inclusive na quinta-feira seguinte quando, à noite, transmitimos aos demais moradores-de-ruia que a conheciam, a sua melhora. Todos demonstravam alegria e agradecimento aos membros do Grupo por terem socorrido e assistido sua colega.
No sábado à tarde, por volta das cinco da tarde, veio o "balde de água fria".
Um telefonema da Santa Casa avisou-nos que Denise havia falecido alguns minutos atrás.
Choramos.
Vimos nosso trabalho desmoronar.
Tanta dedicação e perdíamos Denise.
Um sabor amargo de derrota tomou conta de cada um de nós. Por vários dias ficamos ruminando aquela terrível sensação. Nem vontade de sair na quinta-feira seguinte nós tínhamos.
Mas, de repente, algo nos iluminou.
Derrota que nada !
Nós tivemos foi uma grande vitória !
Vitória que iria transformar a filosofia de nosso trabalho.
Nos dias em que ficou hospitalizada, afastada da brutalidade das ruas, com o entendimento que alcançou à partir do amor e do carinho recebidos incondicionalmente, Denise recuperou sua dignidade. Teve uma ascensão mental e espiritual de grande magnitude. Deixou o corpo físico que havia sido maltratado em toda sua existência e seguiu sua trajetória espiritual com uma nova consciência, muito mais elevada.
A partir daí o Grupo de Apoio Dona Benedita mudou sua maneira de atuar nas ruas de São Paulo.
Acompanhado de um copo de chocolate quente, passamos a levar aos moradores-de-rua, ao invés de um sanduíche de mortadela, uma mensagem de fé, de amor e de esperança em dias melhores; colocando-nos à disposição para encaminhá-los num retorno à vida com dignidade.
Nosso trabalho desenvolveu-se com este foco por quase dez anos. Encaminhamos de volta à vida mais de cem pessoas. A maioria era de homens com idade entre dezoito e cinquenta anos. Havia, também, algumas mulheres mas todos, indistintamente, eram usuários de álcool ou de drogas pesadas onde prevalecia o "crack". Nós os retirávamos das ruas e, de imediato, os encaminhávamos para casas de recuperação onde ficavam internados poir um período ao redor de seis meses. Neste espaço de tempo fazíamos uma aproximação com a família a qual, na maioria dos casos, nem sabia se eles estavam vivos ou mortos. Promovíamos cursos profissionalizantes para aqueles que não tinham um ofício e, após o período de recuperação, nós os encaminhávamos para o mercado de trabalho.
Muitos retornaram à ruas atendendo, principalmente, ao chamado das drogas. Outros, optaram pela vida e devem estar enfrentado, ainda hoje, sua corrida de obstáculos diária, superando desafios e mais desafios, vivenciando cada uma das etapas propostas pelos Arcanos Maiores do Tarô.
Durante esta década de trabalho nas ruas de São Paulo, pudemos observar um fato que, mais uma vez, mudou os destinos do Grupo.
Tínhamos grandes dificuldades em encontrar locais apropriados para abrigar mulheres idosas que demonstrassem o interesse em sair das ruas. Somente colocavam a nossa disposição albergues públicos os quais eram prontamente rejeitados pelas idosas. Preferiam passar pelas dificuldades das ruas a enfrentar a brutalidade restrita dos albergues, envolvendo violência, bebidas. Drogas, prostituição, roubos e estupros. Presenciamos algumas idosas morrendo nas ruas por falta de abrigos.
Foi então que D.Neuza sentenciou:

-"Vamos montar um abrigo para idosas carentes".

E foi o que aconteceu.
Dois anos mais tarde estava sendo inaugurada a Casa Amigos da Vida, um abrigo para idosas carentes moradoras-de-rua.
Nos dias atuais, dentro do melhor conforto físico que a situação financeira do Grupo permite, abrigamos com muito amor, dezessete idosas carentes portadoras de transtornos mentais, ex-moradoras-de-rua.
Procuramos vivenciar amor e carinho com a consciência da compaixão e sabedores de que a falta destes dois ingredientes é a causa maior dos transtornos mentais.
A Casa Amigos da Vida foi batizada com este nome, pois foi instituída e é mantida por pessoas que priorizam a Vida.
Para conhecer melhor a Casa, visitem www.casaamigosdavida.blogspot.com
































Registramos nosso agradecimento às demais pessoas, além dos fundadores, que fizeram parte do Grupo de Apoio Dona  Benedita, durante os anos em que andamos pelas ruas de São Paulo. Todos deixaram sua parcela de preciosa colaboração.  Não citaremos nomes para não cometer injustiças com um possível esquecimento, mas temos a certeza de que cada um deles sabe de sua importante parcela de colaboração no êxito de nosso trabalho.